sábado, 10 de janeiro de 2009

John Woo

No setarosblog há um texto iluminador do Ruy Gardnier sobre Hitchcock.Eu sou de outra época: Fui criado com chocolate,Woody Allen e John Woo,mas não consegui escapar do alcance do Gardnier.O texto que eu trancrevo aqui exemplifica bem isso:*** A dupla face de uma mesma moeda por Ruy Gardnier***

A querela em torno da obra de John Woo não é de hoje. Trata-se de um autor, no sentido que a análise fílmica considera os realizadores com estilo e temática pessoais? Ou então trata-se de um artesão talentoso, de inclinação espacial para as cenas de ação e para a coreografia de tiroteios? A questão bem que se poderia colocar de outra forma. Ao invés de perguntar "se" Woo é um autor – pergunta de uma metodologia um bocado arrogante e sempre arbitrária demais – é interessante que se pergunte "que" tipo de autor é John Woo.
Uma tentativa de resposta: certamente não aquele tipo de artista a que o público dos cinemas de arte está acostumado. Suas obras em Hong Kong, mesmo as mais perfeitamente realizadas, contêm sempre uma gracinha fora de hora, uma rapidez especial em contar as coisas que é sempre seguida por cenas de detalhe realizadas em câmara lenta. Os momentos da história que deveriam ser sérios, sentimentais ou lacrimejantes adquirem sempre uma dimensão propriament lúdica, como se fosse preciso uma auto-ironia do próprio filme para que a história pudesse ser levada adiante. John Woo aproveita-se dessas cenas, que nos filmes de ação são filmadas geralmente apenas para fazer a história seguir, sem um tesão especial, John Woo as transforma em palco para uma segunda leitura do filme, autoparódica, irreverente, virtuosística e, no limite, distanciadora. Essa, entretanto, é uma tradição do cinema oriental popular – basta ver alguns dos filmes de gênero de Seijun Suzuki e de Tsui Hark, essa espécie magnífica de continuador –, que Woo utiliza à perfeição, mas que entretanto não é tão bem compreendida pelo público "educado" ocidental.
Seu estilo tem um tanto a ver com sua criação. John Woo nasceu em 1948, no Cantão (sudeste da China), mas logo em 1950 sua família foi uma das muitas a se refugiarem na ilha de Hong Kong a partir da fundação da República Popular da China. De família pobre, viveu na pele o estranho ambiente de marginalidade e ordem que povoa seus filmes. Woo (na verdade Ng Yu-sum) fez seus estudos, patrocinados por uma família americana, numa escola luterana (de onde certos críticos imaginam que retirou boa parte das influências religiosas: pombos, igrejas, virgens-marias...), e no tempo ocioso ia ao cinema assistir a comédias musicais americanas (de onde se pode adaptar o gosto pelas coreografias de tiroteio). Woo não tinha outra opção: pobre demais para pagar estudos de cinema, fez da sala de projeção sua escola, e mais tarde o próprio set, tendo sido "adotado" mais tarde (1969) pelo realizador Zhang Che, de quem ele afirma ter extraído uma grande parte de ensinamentos.
Em 1972, John Woo realiza seu primeiro filme, Farewell Buddy, que entretanto foi censurado pelo governo por causa de sua violência. Em 1975, assina com a companhia Golden Harvest, magecompanhia de Hong Kong que já assinou nomes como Tsui Hark e Hou Hsiao-hsien. A partir daí, a batalha de Woo se parece muito com a de seu herói em The Killer: uma luta constante contra aqueles com quem ele faz negócio. Em 1981, Tsui Hark o convida para a sua Cinema City, e Woo aceita, imaginando que, como realizador, Tsui compreenderia os constrangimentos de uma mão forte demais na produção. Triste esperança: apesar de exímio realizador, como produtor ele quer que tudo num filme passe por seu controle. Se até 1989 John Woo continuou vivendo sob a mão forte de um produtor que o constrangia, conseguiu realizar entretanto um de seus filmes mais importantes, Alvo Duplo (A Better Tomorrow), o filme que levou ao estrelato não só ele, mas também o então novato Leslie Cheung, mas principalmente Chow Yun-fat, agora astro em Hollywood.
A partir de 1989, John Woo vive o ápice de sua forma. Realiza The Killer, considerado até hoje como sua película mais pessoal, e ainda antes de sair de Hong Kong para oe Estados Unidos, em 1993, realiza Bala na Cabeça e Fervura Máxima (Hard Boiled). Seus primeiros dois filmes americanos para película (O Alvo e Broken Arrow), fazendo com que o público ocidental ficasse receoso que Woo fosse mesmo um realizador de primeira categoria. Entretanto, com A Outra Face (Face/Off) e M:I 2, conquistou devidamente seu posto como um dos mais criativos realizadores da atualidade, com a depuração de um estilo cheio de efeitos de ilusão, câmaras-lentas, montagem eisensteiniana (o mesmo acontecimento visto por diversos ângulos) e uma construção dramática pouco verossímil mas que entretanto é muito lúdica com o espectador.
A coisa que mais surpreende no cinema de John Woo, mais do que sua estética, é a recorrência dos temas. Rigorosamente, cinco de seus filmes mais importantes apresentam exatamente a mesma história: o herói, na luta com o vilão, acaba se identificando com ele. Essa pode ser a sinopse tanto para Alvo Duplo, The Killer, Fervura Máxima, Alvo Duplo ou M:I 2. Não é à toa que nesse dois últimos filmes os mocinhos usem os rostos dos bandidos ou vice-versa: a moral dos filmes de John Woo é propriamente a moral da ambigüidade, aquela do maverick, aquele sujeito que pouco importa o lugar em que ele está ou sua posição moral (bem ou mal); o que importa é que ele é diferente de todos os outros porque respeita apenas sua ética e nada mais. É nesse ponto que os bandidos se identificam com os mocinhos. Em M:I 2, Sean Ambrose passa para o lado malvado porque não poderia se comparar como mocinho a Etahn Hunt; mas inversamente Hunt também não deseja ser melhor que Ambrose, mesmo que para isso tenha até que roubar-lhe a namorada? Tomemos então os momentos finais de The Killer: Tony leung e Chow Yun-fat finalmente reconhecem que estão juntos, que fatalmente lutam a mesma batalha por lados opostos. São, de qualquer forma, amigos.
O melhor lugar cinematográfico para observar essa estética da ambigüidade, esse elogio das grandes baleias brancas, nascidas tarde demais num mundo que não as suporta, é no filme em que pela primeira vez surgem esses heróis: Alvo Duplo. Ho e Kit são irmãos. Ho, mais velho, sem o conhecimento do irmão, é um dos mais eficientes trabalhadores numa máfia de falsificação de dinheiro; Kit é um jovem policial que tem altos ideais e deseja prender os criminosos. Quando o pai dos dois morre, Kit fica sabendo de tudo e passa a odiar o irmão por atribuir-lhe a morte do pai. Enquanto isso, Ho está preso em Taiwan porque decide abandonar sua vida de crime (a pedido do pai, que não queria "ver seus dois filhos brincando de polícia e ladrão na vida real"). O fim do filme, entretanto, vê os dois irmãos (com a ajuda de Chow Yun-fat, responsável mesmo como coadjuvante pela cena mais sensacional do filme, em que ele vinga a prisão do parceiro com um massacre esplendidamente filmado) lutando contra um inimigo comum. Desesperançoso, incomum, e acima de tudo solitário, John Woo é hoje o realizador por excelência do exímio ermitão. Ele filma a saga do homem que, por ser bom demais (por ser ético), encontra-se acima do bem e do mal.

Um comentário:

Anônimo disse...

Não se esqueça dos pombos,câmeras que giram,sobretudos e balas.