sábado, 7 de fevereiro de 2009

Elegancia e Generosidade 2

Uma poética, um legado e uma dádiva. Sobre Olympia, de Fausto Wolff
Lélia Almeida




Fausto querido,
Vou continuar no gênero epistolar, já que foi assim que começamos. Segue o que combinamos por e-mail, que são os meus comentários sobre o seu último romance.
Desculpe a demora para comentar o seu magnífico romance Olympia. Não gosto de demorar assim. Eu, particularmente, fico meio ansiosa quando peço uma opinião sobre o que escrevo, embora esteja convencida de que você não precisa da minha opinião sobre este romance.
Li as críticas excelentes do Marcelo Backes e da Eunice Esteves sobre o romance. E o comentário do Luiz Horácio também. Gostei muito de tudo o que eles escreveram. Gosto da crítica inteligente que pode ser iluminadora de uma obra literária e a universidade está, atualmente, dizendo qualquer bobagem sobre os ficcionistas. Ainda acho que, muitas vezes, alguns jornalistas cumprem melhor o papel de bons críticos do que os eficientes professores de teoria literária.
E quando a crítica literária inteligente ilumina o texto literário, é como se tivéssemos uma garantia de que o autor estabeleceu uma interlocução importante com o leitor e com o seu tempo. Alguns textos, no entanto, permanecem anos na solidão e no silêncio esperando que a crítica possa fazer a sua parte. Clarice Lispector teve de esperar muitas décadas para que a crítica feminista, por exemplo, pudesse nomear as singularidades do seu texto.
Penso que a crítica literária inteligente tem de ser criativa, da mesma maneira como o autor o foi quando escreveu. Sempre insisti com os meus alunos: está tudo ali, está tudo no texto, não procurem na internet, na casa da Mãe Joana, no Google ou onde for. O que o autor quis dizer está ali, nas páginas do livro. Lembrei de um aluno que me disse uma vez, eu não quero ser escritor, nem professor e nem crítico literário, eu quero é ser leitor, dona Lélia.
O seu romance me fez lembrar desse desejo dentro de mim, Fausto Wolff, eu também quero, antes de mais nada, ser uma leitora. Digamos que entre as muitas possibilidades que os livros nos dão, ser leitora ainda é a que mais me dá prazer.
Não vou, pois, me deter no que já foi dito de maneira primorosa pelos críticos citados, que tão bem perceberam a engenharia perfeita da narrativa, o brilhante jogo especular através de diferentes vozes que se desdobram em diferentes personagens, todos eles Fausto Wolff. A brincadeira da construção da criação do mundo, a megalomania teogônica. Enfim, para mim tudo o que foi analisado está correto e muito bem identificado.
Mas o que mais me encantou no seu romance, Fausto Wolff, foi constatar que este é um romance que fala sobre literatura. Palavras-luzes surgiram enquanto eu pensava no que escrever. O seu romance, quiçá a sua obra, Fausto, são uma reflexão permanente sobre a construção de uma poética, sobre a história de um legado e sobre a necessidade de ser dadivoso.
Estas reflexões aparecem em muitos momentos de Olympia, quiçá de toda a sua obra, repito, que eu ainda não conheço inteiramente, mas são, seguramente, reflexões que já apareciam em À mão esquerda. Vou começar esta interlocução, portanto, pensando nestas palavras-luzes, que me sinalizaram algumas questões.
Uma poética, um legado e uma dádiva.

I
Lembro que Antonio Candido chamou de realismo político um tipo de literatura produzida por jornalistas, a partir dos anos 70, e que foi a responsável pela possibilidade de lermos a história recente do nosso país, a partir de olhos talentosos e críticos. O que fizemos nos anos 70 e 80, na literatura, outros países latino-americanos estão começando a fazer muito recentemente. E, os responsáveis por uma produção literária crítica e talentosa, que contava o que estava acontecendo, naquele momento, no país, foram nomes que são muito pouco lidos, na atualidade, como os romancistas Paulo Francis, Darcy Ribeiro, Antonio Callado, Sinval Medina, Ivan Ângelo, Loyola Brandão e Fausto Wolff, só para citar alguns.
Este tipo de literatura, que fala diretamente da história das ditaduras nos nossos países, da história da censura naquele momento, uma literatura bastante testemunhal, está ainda na ordem do dia na literatura latino-americana. Autores como Marcela Serrano e Ariel Dorfman, no Chile, Elza Osório e Liliana Hecker, na Argentina, Julia Alvarez em Porto Rico, Mario Vargas Llosa no Peru e Carlos Fuentes no México, são alguns exemplos que me ocorrem agora. Mas são muito poucos ainda, no Brasil e menos ainda na América Latina, os que contam o que está acontecendo nos nossos países, na atualidade.
Muitos autores brasileiros, que eram, na sua maioria, jornalistas, já tinham produzido este tipo de literatura, com duas décadas de antecipação, em relação aos demais países latino-americanos. E acho que o fato deles serem jornalistas e terem sido banidos dos jornais e dos meios de comunicação fez com que a nossa literatura ganhasse potencialmente. Eduardo Galeano, no Uruguai, foi um exemplo importante deste tipo de literatura que misturava a poesia com a crônica política, histórica e criava um relato dramático que contava a história de terror que assolava os nossos países.
Talvez haja mais de uma explicação para estas assimetrias. Penso, sem me aprofundar muito na questão, que as datas realmente são diferentes. Quando ocorreram os golpes na Argentina, no Uruguai e no Chile, no Brasil já tínhamos dez anos de ditadura, e o processo de abertura democrática também aconteceu antes no Brasil do que nestes países. Mas não deixo de especular sobre a possibilidade de que este tipo de literatura, crítica, de denúncia e de testemunho, tenha acontecido ali, no calor dos fatos e dos acontecimentos, no Brasil, porque muitos destes romancistas tinham vindo de um jornalismo combativo, bem-humorado e comprometido.
E porque, alguns países, como é o caso da Argentina, talvez precisem de muito mais tempo para lavar a roupa suja tanto da ditadura e seus desaparecidos, como da Guerra das Malvinas, assuntos estes ainda proibidos no cotidiano do povo argentino. A literatura e o cinema que falam sobre esta história recente são realmente incipientes, nos demais países latino-americanos, se compararmos com o que os brasileiros fizeram ali, no calor dos acontecimentos.
E você, Fausto Wolff, que está na ativa há bastante tempo, está, atualmente, sendo celebrado pelo público e pela crítica, quando outros autores importantes daquela época sequer são conhecidos como ficcionistas, como é o caso do Paulo Francis, que tem romances importantes sobre aquele período. Mas a sua literatura avançou, falou do que acontecia naquele período e fala do que acontece, na atualidade, na história política do país, e muitos poucos se atrevem a esta crônica lúcida e impiedosa no calor dos fatos.

II
Lendo Olympia, Fausto, lembrei de um texto do Walter Benjamin [2] que eu gosto muito, sobre o narrador, O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. Para falar da obra do autor russo Nikolai Leskov, e sobre a questão da narrativa, Benjamin faz uma série de considerações sobre o ofício do narrador e as suas ponderações permanecem, para mim, de uma atualidade e pertinência impressionantes. É neste texto que ele fala dos dois tipos de narradores, o camponês sedentário e o marujo comerciante. Mas gosto especialmente quando ele se questiona sobre legitimidade da experiência narrada. E diz, - o texto foi escrito no período entre - guerras, que a narrativa está em crise, sua qualidade em baixa, porque as experiências vividas não valem a pena serem narradas. O que se viveu, a experiência da guerra, não vale a pena ser narrada. Não é digno de ser repassado, recontado.
A sua experiência literária, Fausto Wolff, vem nos dizer exatamente o contrário. Se, como queria Benjamin, não há narrativa sem experiência, e se o que foi vivido tem de ser narrado, e se o que foi dignamente vivido tem de ser narrado com qualidade, só há uma maneira possível de se viver. Que é viver com paixão, com entrega, com comprometimento, com inteireza e com coerência. O rigor da narrativa e da escrita provêem, portanto, de um rigor absoluto com este comprometimento e com esta coerência. De viver de acordo com o que se acredita e de acordo com o que se narra. Assim, o que foi vivido pode ser narrado porque foi vivido com verdade e grandeza.
Neste sentido a biografia de Gabriel García Márquez se chama justamente Vivir para contarla. No seu caso, Fausto Wolff, não há, todavia, uma tensão entre o ficcional e o autobiográfico, e nem mesmo uma mistura ao acaso destes elementos, há sim, a construção de uma poética, há uma maneira de fazer literatura que corresponde a um modo de viver. E há uma concepção absolutamente lúdica da vida e da literatura. A sua ficção é a construção de uma grande brincadeira, de um grande jogo, e que expressa um imenso prazer na feitura e na entrega do que se produziu.
Assim, as passagens que contam dos relatos do jornalista, as grandes reportagens, são absolutamente literárias, poderiam ser ou não ficção, não importando essa medida dentro da narrativa, porque só o que foi vivido com verdade merece ser contado. E como é impossível viver sem narrar, e como a narrativa tem de ser grandiosa, eloqüente, a vida também não pode ser pequena, nem mesquinha, e nem sem graça.
Mas a expressão desta narrativa que conta uma vida que engloba, na verdade, a história de muitas vidas, em muitos países, com muitas mulheres, cheia da história de muitos amores, com muitos porres e muitos enganos, tem que ser contada porque um outro aprendizado muito importante se dá. Junto com o que foi excessivamente experimentado, há um aprendizado através dos livros. Tanto os livros que se lêem como os livros que se escrevem.
Conhecer através dos livros é, pois um valor, um tipo de conhecimento altamente valorizado por você, Fausto Wolff, o único talvez, que se equipare ao conhecimento que a própria experiência nos dá. Mas não é só conhecer através dos livros, é conhecer através da literatura.
O teatro me deu uma vida, ouvi outro dia a Fernanda Montenegro dizer. No seu caso você poderia dizer, a literatura me deu uma vida, os livros me encheram a vida, as mãos, os livros me deram tudo. As palavras e as narrativas foram soberanas.
Há referências sobre a sua formação formal, ou sobre a ausência dela, em vários momentos dos seus livros. E mesmo assim, você escreveu nos jornais e periódicos mais importantes do mundo e lecionou em universidades onde muitos doutores jamais o farão. A necessidade da criação dos inventários dos seus diversos cânones parece ter uma função meio compensatória, inconsciente quiçá, como se o fato da aparente irregularidade da sua educação formal, sistemática, o fizesse ter de ser muito mais rigoroso e exigente com a sua formação de leitor e de escritor.
Assim como ler e conhecer através dos livros é um valor, e a educação através dos livros e do conhecimento é um valor, também repartir e dividir esta maneira de conhecer se constitui num valor importante.
Vida e literatura se misturam porque há a necessidade de construir uma poética, de criar um jeito de contar e este jeito de contar não pode estar separado do jeito de viver.
Todavia o jogo ficcional se evidencia através da mistura dos gêneros, que se constitui de forma fácil e fluente, só passível de ser realizada por um grande leitor de literatura. Os diálogos que possuem uma força dramática impecável, os caprichos do romance policial, as falsas coincidências os ganchos, a ensaística, uma mescla que revela a complexidade de um leitor que se diverte escrevendo assim como se divertiu lendo.

III
Portanto, penso que há neste romance uma poética, que é o jeito como você concebe a literatura, a sua literatura, Fausto, a sua maneira de fazê-la e você divide isso, de muitas maneiras com o leitor. Você desenha o mapa junto com o leitor.
Você diz ao leitor: o livro que não for o seu autor não vale a pena ser lido. Se o leitor não está vivíssimo é porque o escritor nem deveria ter começado a contar a história. (p.16) Você orienta o leitor: tudo o que foi escrito e narrado foi, necessariamente, vivido, foi, necessariamente sentido, seja da maneira que for. E para bem escrever é preciso bem viver. E bem viver é viver com verdade, com autenticidade. E viver em solidariedade, e viver de uma maneira lúdica e criativa.
Mesmo que no romance se cite Aristóteles lembrando que (...) o importante não era descrever o que realmente aconteceu, mas o que poderia ter acontecido. (p.263) Ou se imagine um diálogo em que Agamêmnon chama Odisseu de mentiroso, quando ele responde que a função do poeta não é narrar o que aconteceu, mas o que poderia ter acontecido. (p.311) O jornalista brinca com o leitor, faz-se de desentendido do ofício que ora desempenha:
(...) mas acho que estou confundindo vocês. É essa mania que vem do jornalismo, de querer botar as coisas em ordem cronológica para que todo mundo entenda o que estou querendo dizer. Para a literatura, porém, isso pode ser uma armadilha mortal, pois ela exige ação que em grego quer dizer drama, conflito. Por isso temo que sem conflito eu esteja simplesmente escrevendo como um escrivão policial. (p.34).
Mas isso tudo faz parte, na verdade, do jogo que ele anunciou que ia jogar, que é o jogo literário, ficcional.
Não só o que é narrado deve ter a dignidade da experiência vivida, sentida. A experiência vivida tem de ser ética, comprometer-se de maneira crítica e solidária com o seu tempo e com uma ascendência de artistas, com uma tradição. A um mundo neoliberal, capitalista, onde os valores humanistas não têm cabida, opõem-se os valores que falam do desejo de um mundo justo, dos valores mais caros e legítimos do artista que é, em última instância, Deus, Barroso, o artista, o escritor Fausto Wolff.
Só a arte pode responder aos desmandos destes tempos incompreensíveis. Mas uma arte que fale deste tempo, olhando criticamente o passado e, implacavelmente, o futuro.
Assim, brinda-se, ao longo das páginas de Olympia, à vitória do autoconhecimento sobre a ganância. Aquele que acha que o espírito é o espírito. (p.299). Contrapõem-se aos valores do capital os valores do espírito:
(...) Aliás, neste teu mundinho de merda, só se pensa em dinheiro e Deus, ou melhor, em falta de dinheiro e Deus. Ainda bem que existe gente como Homero, Shakespeare, Sócrates e Van Gogh - disse Barroso (p.324), um mundo em que (...) a arte tornou-se uma bufonaria comercial e o jornalismo é controlado. (p.279).
Acredita-se que os artistas são os únicos que podem derrotar as forças do mal que fazem com que a humanidade, ao longo dos tempos, sucumba à inveja, ira, sede de destruição e de poder. Já que (...) todos os homens trazem dentro de si a chama divina. Isso nos provam os poetas, os grandes artistas, os cientistas que, entretanto, estão longe da perfeição. (p.359) E esclarece-se que (...) a perfeição não existe. A perfeição consiste em buscar a perfeição. A perfeição é descobrir todas as nossas potencialidades até que todos nos tornemos deuses. (p. 360). E aprende-se da necessidade de compreender que (...) os homens não precisam de deuses e que só encontrarão a felicidade na Terra se descobrirem os deuses que vivem dentro deles. (p.457). E o deus que vive dentro do homem é o artista.
É da contraposição de dois mundos que fala Olympia, um (...) todos recebem de acordo com suas necessidades e colaboram de acordo com suas possibilidades. (p.74) e (...) outro onde se enfrentam três perigos fatais: a propriedade, o ouro e a cruz. (p.78).
E nesta mesma linha de associações, que compõem um ideário, um inventário de valores também, Barroso nos é apresentado como (...) poeta, escritor, cientista e guerreiro, (...) um homem rude, velho, gasto pelo tempo, pelas mulheres e pelas bebidas, para quem a morte é quase uma figura mitológica: (...) Venceram a morte há muito tempo e só morrem as pessoas cansadas de viver, o que também acontece, pois não conseguimos acabar com a angústia, a depressão, o isolamento, a sensação de desamor. A criação é a assassina da morte. Sem criação, a morte domina. (p.229)
Assim, a possibilidade de criar é a única maneira de vencermos a morte, o tédio, a indiferença e a solidão. E realizar uma literatura que tenha o valor de contar com a dignidade da experiência vivida e ter como modelo os grandes livros e os grandes autores. Sem os quais não aprenderemos o que realmente vale a pena. Portanto, é preciso viver como se vive nos livros. Com aventura, com rebeldia, com a certeza de que se pode criar, mesmo que seja através da literatura, um mundo digno e melhor.

IV
E há um legado também, Fausto. O legado tem a ver, na minha opinião, com uma espécie de inventário que você faz do que foi lido, aprendido, vivido, e que se constitui num tipo de herança, tributo, e também de uma belíssima homenagem.
É uma espécie de lista sem fim dos livros que você mais amou, dos autores que você mais gostou, dos pensamentos, das idéias e teorias que mais o influenciaram. E, principalmente, dos amigos com quem você dividiu tudo isso.
A maneira como as listas, os inventários são construídos, mostram a correspondência, uma equivalência da importância igual de todos estes elementos. A lista dos autores, dos personagens, dos artistas de cinema, dos filósofos, dos compositores, se dá na mesma ordem de significado e importância que a lista dos amigos presentes, dos amigos mortos, dos personagens anônimos da vida comum e corrente. Assim como a dos personagens boêmios mais folclóricos e interessantes que habitaram, numa idade de ouro, todos juntos, àquela que é, sem sombra de dúvidas, a cidade mais feliz lúdica do planeta, a cidade do Rio de Janeiro.
A todos estes personagens, - os boêmios que são o coração e a alma dessa cidade -, e a este cenário, você também compõe um inventário próprio e emocionante:
(...) Daqui há mais de vinte anos Joel se surpreenderá dizendo para um maître metido à besta no restaurante Photocahrt, no hipódromo: “Rapaz, não grita comigo por duas razões. Primeiro porque vou te meter a mão nas tuas fuças e vai chover merda sobre o Piauí durante duas semanas. Segundo, porque quando você me trata mal está tratando mal a cidade do Rio de Janeiro. E mais: os falecidos Sérgio Porto, Antônio Maria, Paulo Francis, Burle Marx, Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Radamés Gnatalli, Villa Lobos, Albino Pinheiro, Di Cavalcanti, Elmar Machado, Ferdy Carneiro e os vivos Millôr Fernandes, Jaguar, Jânio de Freitas, Chico Paula de Freitas, Niemeyer, Ziraldo, Fernanda Montenegro, Tônia Carrero, os irmãos Caruso, os irmãos Casé, Ugo Carvana, Paulo Autran, Aldir Blanc, a família Buarque de Holanda, Paulinho da Viola, Paulo César Saraceni, Moacir Werneck de Castro, Fernando Sabino e alguns poucos outros. Nós, os boêmios, somos o coração e a alma desta cidade. Quando você me magoa para impressionar alguns grã-finos, está machucando esta cidade que sempre recebeu de braços abertos quem aqui chegasse.” (p.102-103)
Seu Olimpo particular é feito de autores, mitos, livros e das histórias dos seus amigos, a quem você paga uma espécie de tributo ao longo de todo o texto, homenageando-os, e fazendo-nos lembrar que a imortalidade só acontece quando a memória não morre.
Assim, numa mesma seqüência de significados, como quem não quer esquecer nada importante e ninguém indispensável, você lista escritores e pensadores como Shakespeare, Molière, Cervantes, Goethe, Dostoyevsky, Tolstoy, Kafka, Dickens, Poe, Rabelais, Montaigne, Saint-Exupéry, Manoel de Barros, Millôr Fernandes, B. Traven, Ésquilo, Sófocles, Eurípedes, Mario Quintana, Max Frish, Schopenhauer, Carl Gustav Jung, Marx, Sigmund Freud, Bernard Berkowitz, Homero, Lao Tse, Sócrates, Platão, Aristóteles, Marco Aurélio, Plotino, Lucrécio, Espártacus, Jesus Cristo, Sócrates, Platão, Aristóteles, Tales de Mileto, Erasmo, Paracelso, Agripa e Mesmer.
Elege temas sobre os quais, ao se revistar a história da criação do mundo, talvez não pudessem ficar de lado, fala sobre a natureza do amor, sobre os homens e as mulheres, sobre o tempo e o universo, o amor ao cinema, à música popular brasileira, o terror da Aids, a história das guerras, a política brasileira, seus temas preferidos, quem sabe, seus temas de preferência ou seus grandes pesadelos.
Há inventários de músicas e de compositores que lembram os nomes de Noel, Lupicínio, Geraldo Pereira, Dorival Caymmi, Ari, Lamartine Babo, Nássara, Mário Lago, João de Barro, Cartola, Zequeti, Chico Buarque. De personagens literários como Tirésias, Édipo, Prometheus, Barrabás, Spartacus ou Lilith.
E de textos imprescindíveis para compreender a história do mundo, suas esperanças e grandes tropeços, como os hinos do Rig Veda na Índia, o primeiro vocabulário grego em Knossos, os dez mandamentos, a seda chinesa, os instrumentos musicais entre os hititas, o tambor, o violão, a lira, o trompete, os sonetos de Salomão compilados, a fábula chinesa sobre a batalha entre a Mente e o Ventre, os poemas de Sapho em Lesbos, os Vedas hindus, os ensinamentos de Zoroastro 700 anos antes de Cristo, textos antigos do Iraque, da Assíria, os textos sumérios, hititas egípcios, hieróglifos, gregos e a Bíblia.
Há um inventário dos amigos mortos e cuja memória permanece intacta: Albino Pinheiro, Elmar Machado, Ferdy Carneiro, Sílvio Redinger, José Lewgoy, a mãe de Cássia, Ney Sroulevich, Leonel Brizola, Sérgio Carneiro, os mais recentes. Da leva antiga, havia Flávio Rangel, Carlos Kroeber, Darcy Ribeiro, Antonio Callado, Ênio Silveira, Josué Guimarães, Alfredo Machado, Henfil, Tarso de Castro, Augusto Villas Boas, Paulo Francis, Nássara, Mário Lago, que se foram sem ver a liberdade raiar no céu da pátria (p. (p.458-459).
Dos amigos reais e dos imaginários, que atendem pelos nomes de Rubinho, Machadão, Albino Pinheiro e rei Zulu, Blutterkowski, Gabriel, Sete Quedas, Waldir, Guchica, o Kroeber, o Guinle, o Tabajara e Francisco Alves.
A homenagem aos vulcões da maromba de Aldiroblanco (p.118), à batucada no Clube do Samba, na Sernambetiba, com Jean Scharlau. (p.318), a estrela Maysa, a mais poderosa do desconhecido Quarternário podia ser vista... (p.448), à Escola Professor Marcelo Backes, (p.413), aos cartazes de Ziraldo (p.471), só para citar alguns.
E a utopia de um mundo de justos, de novos trinta e seis homens justos, que poderiam ser, por exemplo:
(...) Um poeta analfabeto, um limpador de vidraças, um piloto como Saint-Exupéry, um troca-trilhos, a dons de um bordel para horrendos pobres, um encadernador de livros, um chef de cuisine, um palhaço de circo, um homem que entende a linguagem dos cavalos, um virologista de grande talento, uma dançarina de balé, um peão de fazenda, um cachorro, um asno, Manoel de Barros, um mágico, um bêbado, uma porta-bandeira da Mangueira, um louco de aldeia, uma professora primária extremamente competente, um autista, um observador de passarinhos, um passarinho, um mentiroso inofensivo, uma puta bela e generosa, o diretor de cinema Mario Monicelli, o ator de cinema Ugo Tognazzi, o filósofo Millôr Fernandes, um padre que realmente cumprisse os dez mandamentos, um pelicano, o escritor B. Traven, bom barbeiro, um salva vidas, uma enfermeira que imprimisse um espírito de missão ao seu trabalho, o dono de um botequim que fiasse cachaça e um consertador de brinquedos. Eles, certamente, garantiriam mais alguns séculos à Terra. (p.253)
Os deuses e autores famosos são tão importantes quanto as gentes comuns, os atores famosos do cinema, e quanto os seus grande amigos.
Enfim, há vários inventários, na verdade, ao longo da narrativa, e você parece um obsessivo colecionador renascentista, amoroso, cuidadoso, enumerando, com medo de não contemplar a todos os que lhe foram caros, imprescindíveis, importantes.
Uma enciclopédia com uma espécie de inventário onde você lista as suas idéias, Fausto, e as da sua geração, quando o que se aprendia com a literatura, com os livros ou com o cinema, se constituíam como uma prática humanizadora legítima.
Você tem de fazer menção a estes cânones todos, Fausto, cânones literários, jornalísticos, políticos, e dividi-los conosco, leitores, essa é a sua forma de dizer que sem estes senhores e suas idéias você não seria quem você é. E é por isto que quando penso neste legado, penso também num tributo. Você é grato a todos os seus cânones por tudo o que aprendeu com eles e é generoso conosco, leitores, porque faz o desenho do mapa, do mapa das minas e subterrâneos que você tão arduamente habitou e escavou.
Você, Fausto, nos brinda com as suas coleções particulares, com o seu patrimônio pessoal, com a sua bagagem, que é tudo o que você possui. Lembrei de uma frase quando o protagonista do À mão esquerda explica para o pai que tudo o que ele possui está dentro da sua cabeça.

V
E porque há uma poética e um legado, há também uma dádiva. Gosto muito da idéia da dádiva concebida por Marcel Mauss em seu Ensaio sobre a dádiva: forma e razão de troca nas sociedades primitivas, de 1923, do qual só posso falar como uma leiga.
Do que me lembro deste texto que li já faz muito tempo, as trocas seriam fenômenos coletivos e responderiam às necessidades culturais, simbólicas, muito mais do que às necessidades utilitárias. Elas selariam as alianças e as comunhões. Da mesma maneira que devolvemos um pedaço de bolo de milho pra uma vizinha que nos presenteou com uma cumbuca de arroz doce. Por isso é tão importante a necessidade da retribuição das dádivas, dos presentes, dos dons. E haveria uma tríplice obrigação no movimento da dádiva: o de dar, o de receber e o de retribuir.
E retribuir é sempre uma maneira de se homenagear e de se agradecer. E você, Fausto Wolff, grato pela dádiva, e pela vida que recebeu de todos os que o antecederam, reparte conosco a sua herança, conosco que somos seus leitores, essa é a sua parte no contrato da dádiva: retribuir o que recebeu, o que lhe foi dado, material e espiritualmente. E você faz isso, reordenando o mundo, escrevendo um romance, criando uma obra, deixando um legado, que são as suas idéias, que é a sua história e a história do seu aprendizado como artista.
Você agradece aos seus cânones de pensadores e de escritores. Mas você agradece, fundamentalmente, a sorte de ter os amigos que teve e com quem dividiu a vida. É a eles que você dedica o livro, a sua aventura num mundo possível chamado Olympia. E, simplesmente, porque foi com eles que você construiu este mundo.
A dedicatória de Olympia é uma dedicatória feliz, a da história de um testemunho quando os projetos coletivos eram legítimos e muito mais importantes do que projetos pessoais e individuais. A amizade, o exercício da amizade foi, diferentemente do que é para as gerações atuais, orkuteiras e superficiais, um projeto político, um jeito de existir, para quem a solidariedade começava ali, numa mesa de bar e se expandia mundo afora.
Os amigos fazem parte, portanto, de um projeto coletivo fundamental, constituintes, estruturantes, parcerias identitárias sem as quais não é possível sobreviver.
Um mundo de esbórnia e putaria, de farra grossa, de boemia e rebeldia, proibido para yupes, caretas e amadores, cheio de gente atormentada, nem sempre felizes, mas quase sempre muito alegres, fina flor do deboche e da anarquia, grandes leitores e grandes talentos, grandes bêbados e amantes destemidos, e os melhores amigos do mundo.
E há uma grita permanente contra a acomodação, contra a caretice, contra o falso moralismo e contra a hipocrisia. E há um hino permanente também, lembrando que somos ridículos, pequenos, e que a vida só vale a pena se pensarmos num projeto decente para todos. Que rir é fundamental, que namorar é mais fundamental ainda, tanto quanto viver cercado com os amigos com quem dividimos a vida e a obra.
Quando terminei de ler Olympia, pensei em você, Fausto Wolff, como um homem dadivoso, como um homem generoso. Que acredita e cumpre com tudo o que nos foi confiado ao longo do romance. Num mundo onde as idéias e os ideais são importantes, onde a socialização do conhecimento é fundamental, e onde o florescimento da esperança é indispensável. Já que, como diz Waldir para Dona Aracy, quando perguntado sobre se ela ainda pode ter esperanças das coisas melhorarem no nosso país: (...) - É claro, dona Aracy. Desde 1964 que esperamos para ver a esquerda no poder. Tenho certeza de que o ano que vem as coisas irão melhorar. (p.415)
Mas esta esperança é feita de concretudes, uma delas pode ser a existência de um livro, de um romance chamado Olympia, talvez, que conta de um mundo que será lembrado cada vez mais, com muita saudade, por muitos poucos.
Obrigada por seu romance maravilhoso, Fausto Wolff. Obrigada por me deixar sentar na mesa do Veloso com você e com os seus amigos, obrigada por me deixar sentar com a Patota de Ipanema, com os doidos maravilhosos do Pasquim, modelares, canônicos, indispensáveis para muitos de nós ainda. Obrigada por dividir seu dom e seu arroz doce, sua ambrosia conosco. Obrigada pela sua ternura, pela sua utopia, pela sua fúria e pelo seu amor pelas gentes deste país, Fausto Wolff. Obrigada por me lembrar que ninguém é obrigado a ser pobre. A pobreza não é uma virtude. Virtude é o combate à pobreza. (p. 358), e por não ter desistido nunca e por me lembrar que é importante e urgente confiar num mundo onde as pessoas vão cantar pelos deserdados da terra. Obrigada por me fazer lembrar que é possível um mundo decente apesar da perversão dos nossos governantes, mesmo que este mundo esteja, neste momento, projetado no nosso imaginário, num lugar chamado Olympia.
Vou terminar este comentário com uma fala do Barroso e outra do Joel de Freitas. E vou transformá-las em bênçãos, tudo dádivas então, comunhão, reciprocidade dos gestos, construção de alianças sólidas através dos livros e das almas, eu garanto a você enquanto abençôo, o seu dever de casa foi feito com primor. Obrigada. E Amém.
(...) Cada homem tem o seu caminho e a sua missão. À medida que caminha, sua missão torna-se mais e mais clara. (...) Acredito que todos os homens trazem dentro de ti a chama divina. Isso nos provam os poetas, os grandes artistas, os cientistas que, entretanto, estão longe da perfeição. (p.359)
(...) - Quando menino sofri muito por sua causa. - disse Joel - Na adolescência, cheguei à conclusão de que o senhor não era importante para meus ideais. A perfeição da natureza informava-me da sua existência, mas não conseguia imaginar alguém tão solitário e com tamanhos poderes. Cheguei à conclusão de que todos nascemos para desempenhar um papel no sentido de dar sua contribuição para a evolução do homem; para seu entrosamento harmônico com a natureza. Acreditei que se desempenhasse meu papel honestamente não teria por que me preocupar com a existência de Deus. Se ele existisse, certamente não seria vingativo e nem me castigaria por meus insignificantes pecados. Se me cobrasse, na hora da minha morte, eu estaria pronto para demonstrar que fizera a minha parte. (p.250).
Com o abraço afetuoso da amiga certa,Lélia Almeida.Em Brasília, 16 de junho de 2008.

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